Mais que a terra do padre e da beata, Juazeiro é um imenso caldeirão onde as esperanças são possíveis
(Iana Soares) Magela Lima
magela@opovo.com.br
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Tivesse, porém, estendido seus domínios aos nossos tempos e terras, Kublai Khan comprovaria que o retrato falado de Marco Polo sobre um pedaço de chão chamado de Juazeiro do Norte, incrustrado num recorte mítico do sertão brasileiro, seria ipsis litteris, no mais fidedigno latim. Feito história e memória por cada um que lhe visita, nossa mais nova centenária é um caso raro de algo que é inventado na exata proporção em que é vivido. Daí, quem nunca por lá andou lhe ser absolutamente íntimo. Nem Kublai Khan duvidaria de uma gente agigantada na peleja cotidiana contra a miséria e na fé inconteste de que Deus é mais. E é. Mesmo que o interlocutor não tivesse a criatividade fabulosa de Marco Polo, tudo lhe soaria como a mais doce das verdades.
Amparo e esperança
Um povoado que se impõe livre, passa a cidade se apartando da vizinha que lhe serviu de berço e em dois tempos lhe supera em população, prestígio político e econômico? Verdade. Uma hóstia feito sangue na boca de uma carola negrinha? Verdade, verdadeiríssima. Um cangaceiro foragido dos cabras da lei feito coronel por um padre feito santo à revelia da Igreja? Ora mais: verdade pura. Um beato mulato de poucas letras que cria a maior tipografia da história da literatura popular brasileira? Absolutamente verdade. “De uma cidade, não aproveitamos as sete ou 77 maravilhas, mas as respostas que dá às nossas perguntas”, diz Calvino e Juazeiro assina em baixo com cores fortes.
Lá, nunca ninguém padeceu de alento ou amargou dúvida atroz. No rastro do padre milagroso, seus fiéis encontravam, sobretudo, amparo e esperança. Assim como fez brotar do nada uma terra nova, padre Cícero acreditava ser possível, a todos, se reinventar. Então, para ele, tudo quanto era pecado podia ser redimido. Não havia pergunta sem resposta, nem crime sem perdão. Em Juazeiro, o devir nunca foi vinculado às incertezas do futuro. Com fé e trabalho – “cada casa uma oficina, cada oficina um oratório”, dizia o padre -, uma cidade foi erguida fazendo do hoje o maior dos paraísos. Daí, Juazeiro ter sido, desde nascença, cosmopolita e visionária.
Lá, nunca ninguém padeceu de alento ou amargou dúvida atroz. No rastro do padre milagroso, seus fiéis encontravam, sobretudo, amparo e esperança. Assim como fez brotar do nada uma terra nova, padre Cícero acreditava ser possível, a todos, se reinventar. Então, para ele, tudo quanto era pecado podia ser redimido. Não havia pergunta sem resposta, nem crime sem perdão. Em Juazeiro, o devir nunca foi vinculado às incertezas do futuro. Com fé e trabalho – “cada casa uma oficina, cada oficina um oratório”, dizia o padre -, uma cidade foi erguida fazendo do hoje o maior dos paraísos. Daí, Juazeiro ter sido, desde nascença, cosmopolita e visionária.
Lá, sempre coube de tudo e houve espaço para todos. Muito antes de uma revolução chamada Lula, Juazeiro soube que pobre consumia e que o mais reles dos produtos - um santo de gesso, um chapéu de palha, uma peça de barro, uma fitinha qualquer -, rodava um dinheiro sem o qual lugar nenhum nesse mundo de hoje, com os valores de hoje, é capaz de crescer e se impor. Juazeiro sempre foi classe C, sempre teve uma dinâmica intensa e frenética dos grandes centros, sempre comungou sotaques como uma Copacabana, sempre foi um lugar no qual a vida mais desregrada tomava jeito e a qualquer um era possível sonhar com tempos fartos.
Com isso, a cidade dos flagelados e fanáticos cavou seu espaço. Fortaleza e Sobral, com quem compartilha projeção e poder no contexto estadual, e também o Crato, sua eterna vizinha-rival, contavam para mais de século quando Juazeiro se faz cidade. Embora jovem, menina ainda, Juazeiro do Norte foi responsável por reposicionar os rumos da história do Ceará. Sobretudo, nossa história cultural. Popular por excelência, massiva, Juazeiro alçou a cultura do povo a um status outro. Enquanto Fortaleza, por exemplo, sempre foi indiferente às manifestações populares, se esforçando para sobressaltar as elites mais fajutas e apagar o que é do povo, lido como coisa de pobre, Juazeiro misturou tudo.
Basta dizer que o outrora imponente Panorama Hotel quase fazia esquina aos humildes ranchos dos romeiros. As fronteiras em Juazeiro são diminutas e, na cultura, quanto menos barreiras, mais potência criativa. Quer coisa mais cearense que a Lira Nordestina do alagoano José Bernardo da Silva (1901-1971)? Que dizer do traço, do talhe e do colorido do pernambucano Mestre Noza (1897-1983)? Em Juazeiro, o Ceará se reinventou graças a um emaranhado de gente que, ao contrário dos cearenses da lavra de Iracema e Martim, que nascem já predestinados a partir, fizeram caminho inverso e aqui decidiram ficar e criar. Juazeiro do Norte fez do Ceará um ponto de chegada e estada, e, não mais, porto de baldeação. Juazeiro nos deu esperança e é ela que roda a vida.
Magela Lima é Editor Executivo do Núcleo de Cultura e Entretenimento
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